Sempre quis fazer um piercing. Dizia que
significaria minha libertação dos pais e de tudo que me cerca. Meus pais sempre
foram contra essa atitude, nunca me permitiriam fazer um enquanto menor de
idade. Mas, com a chegada dos tão cobiçados dezoito anos, decidi que iria
fazer. Eles não poderiam negar, afinal, segundo a lei, eu respondia pelos meus
próprios atos.
Antes disso,
resolvi furar uma das orelhas, a esquerda, pra ser mais exato. Tudo isso pra
saber se saberia lidar com as implicações do futuro furo do piercing. Foi
uma experiência difícil, minha orelha inflamou toda e o ferimento ocasionado
pelo brinco demorou um bom tempo para cicatrizar, aproximadamente uns cinco
meses. Tempo grande para um simples furo na orelha. Nessa fase, tive a ajuda da
minha mãe, que, como mulher, sabia exatamente tratar aquilo.
Mesmo com essa
dificuldade do furo na orelha, resolvi arriscar. Como já disse, o piercing
representaria minha liberdade. Meu primeiro ato para aproveitar o início da
minha maioridade, afinal, nessa época ainda não bebia. Queria mostrar pra todo
mundo que eu era livre para escolher o que eu queria pra mim. E, naquele
momento, eu queria porque queria um piercing. Um transversal na orelha direita,
para se contrapor àquele brinco preto que ficou no lugar da inflamação da
orelha esquerda. E fui fazer. Somente comuniquei aos meus pais, que logo me
alertaram sobre as implicações daquele ato. Mas, estava irredutível. Disse que
tinha pensado muito naquilo, e, de fato, tinha mesmo, e que eu estava muito
seguro da minha decisão. Iria fazer e ponto final. Fui ao banco, peguei o meu
dinheiro, que, no final das contas, nem era meu mesmo, e fui pro estúdio. Entrei,
perguntei como era e quanto era. A atendente disse que não doía e que podia ser
feito logo naquele momento mesmo. O preço me saltou os olhos: setenta reais.
Pra mim, naquele tempo, era uma fortuna! Representava boa parte do que eu
ganhava por mês. Fazer aquilo iria me falir por um bom tempo. Mas a vontade era
tanta, que resolvi arriscar. Topei.
Entrei na sala, cheia de espelhos, me
sentei na cadeira verde, toda acolchoada. Aí o medo começou a subir em mim. Sempre
tive medo de sangue, de agulhas e de furos. Será mesmo que era isso que eu
queria? Mas já era tarde, já tinha pagado e não tinha como voltar atrás.
Resolvi encarar. Doeu, confesso. E, por sorte, ou pela própria fisiologia da
cartilagem, não saiu nenhuma gota de sangue. E pronto. Já estava com um belo
transversal de aço cirúrgico na orelha. Em uma de suas extremidades, havia uma
bolinha, na outra, uma espécie de lança, chamado “spike”. Doía, sim, mas eu
acho que eu estava tão eufórico que não ligava pra isso.
Dessa vez, não fui negligente, como quando
furei a orelha, e cuidei direito da minha nova aquisição. Passava água quente e
pomada todos os dias. Mesmo assim, não foi uma cicatrização completamente tranquila.
Mas consegui passar por cima dessas dificuldades. Porém, uma mensagem ficou
gravada: não há liberdade sem responsabilidade.
A partir dessa data, vivenciei muitas
coisas na minha vida. Morei sozinho pela primeira vez, aprendi a fazer coisas
que nunca sonhei em fazer, conheci pessoas diferentes. E, finalmente,
experimentei a real liberdade.
Mas, como nem tudo são flores, houve
dificuldades, também. E eu, talvez pela pouca idade, tive uma experiência boa,
mas eu não estava pronto para seguir a diante. Tive a certeza que, naquele
momento, pelo menos pra mim, liberdade não era tudo na vida. Há várias coisas
por trás da liberdade e que a gente só aprende mesmo com o passar do tempo. Uma
pessoa só consegue usufruir de sua liberdade quando tem uma base. Uma base que
é um misto de moral, desejo individual e conhecimento da vida. E eu
definitivamente só tinha os dois primeiros vértices desse triângulo: sempre soube
o que queria da vida e sabia que “minha liberdade terminava quando a do outro
começava”. Mas de vida real, de responsabilidade, eu não sabia nada.
Com medo, recuei, precisava disso pra mim.
E o piercing-liberdade continuava lá. Apesar de tudo, ainda tinha um carinho
grande por ele, e ainda um pezinho na liberdade sem medidas. A lança, o “spike”,
da ponta inferior representava bem esse lado da liberdade. Esse lado que
machuca. Já havia me machucado diversas vezes com essa parte do acessório,
inclusive. Com o tempo, fui vendo que a liberdade não era só sair fazendo o que
bem quiser. E, percebi que aquele acessório que, um dia representou uma nova
fase da minha vida, não fazia mais sentido. Que ele foi importante, que através
dele, aprendi uma lição que levarei para o resto da vida. Mas que o significado
dele no meu corpo já não era aquele de anos atrás, quando fui ao estúdio.
Como a liberdade irresponsável, foi
difícil retirar o piercing da orelha. O alto custo na época e o amor que eu
peguei por aquele pequeno objeto foram decisivos para continuar com ele por
algum tempo. Ainda não estava pronto. Até que um dia tive a simples vontade de
tirá-lo. Veio naturalmente, assim como a real liberdade, quando você aprende realmente
lidar com as implicações dela. Hoje guardo aquele tempo, juntamente com o
piercing, com nostalgia, mas que era preciso ser superado. Porém, continuo com o brinco na orelha direita, afinal, um pouco de liberdade não faz mal a ninguém.