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domingo, 29 de janeiro de 2012

A metáfora da liberdade


Sempre quis fazer um piercing. Dizia que significaria minha libertação dos pais e de tudo que me cerca. Meus pais sempre foram contra essa atitude, nunca me permitiriam fazer um enquanto menor de idade. Mas, com a chegada dos tão cobiçados dezoito anos, decidi que iria fazer. Eles não poderiam negar, afinal, segundo a lei, eu respondia pelos meus próprios atos. 
Antes disso, resolvi furar uma das orelhas, a esquerda, pra ser mais exato. Tudo isso pra saber se saberia lidar com as implicações do futuro furo do piercing. Foi uma experiência difícil, minha orelha inflamou toda e o ferimento ocasionado pelo brinco demorou um bom tempo para cicatrizar, aproximadamente uns cinco meses. Tempo grande para um simples furo na orelha. Nessa fase, tive a ajuda da minha mãe, que, como mulher, sabia exatamente tratar aquilo.
Mesmo com essa dificuldade do furo na orelha, resolvi arriscar. Como já disse, o piercing representaria minha liberdade. Meu primeiro ato para aproveitar o início da minha maioridade, afinal, nessa época ainda não bebia. Queria mostrar pra todo mundo que eu era livre para escolher o que eu queria pra mim. E, naquele momento, eu queria porque queria um piercing. Um transversal na orelha direita, para se contrapor àquele brinco preto que ficou no lugar da inflamação da orelha esquerda. E fui fazer. Somente comuniquei aos meus pais, que logo me alertaram sobre as implicações daquele ato. Mas, estava irredutível. Disse que tinha pensado muito naquilo, e, de fato, tinha mesmo, e que eu estava muito seguro da minha decisão. Iria fazer e ponto final. Fui ao banco, peguei o meu dinheiro, que, no final das contas, nem era meu mesmo, e fui pro estúdio. Entrei, perguntei como era e quanto era. A atendente disse que não doía e que podia ser feito logo naquele momento mesmo. O preço me saltou os olhos: setenta reais. Pra mim, naquele tempo, era uma fortuna! Representava boa parte do que eu ganhava por mês. Fazer aquilo iria me falir por um bom tempo. Mas a vontade era tanta, que resolvi arriscar. Topei.
Entrei na sala, cheia de espelhos, me sentei na cadeira verde, toda acolchoada. Aí o medo começou a subir em mim. Sempre tive medo de sangue, de agulhas e de furos. Será mesmo que era isso que eu queria? Mas já era tarde, já tinha pagado e não tinha como voltar atrás. Resolvi encarar. Doeu, confesso. E, por sorte, ou pela própria fisiologia da cartilagem, não saiu nenhuma gota de sangue. E pronto. Já estava com um belo transversal de aço cirúrgico na orelha. Em uma de suas extremidades, havia uma bolinha, na outra, uma espécie de lança, chamado “spike”. Doía, sim, mas eu acho que eu estava tão eufórico que não ligava pra isso.
Dessa vez, não fui negligente, como quando furei a orelha, e cuidei direito da minha nova aquisição. Passava água quente e pomada todos os dias. Mesmo assim, não foi uma cicatrização completamente tranquila. Mas consegui passar por cima dessas dificuldades. Porém, uma mensagem ficou gravada: não há liberdade sem responsabilidade.
A partir dessa data, vivenciei muitas coisas na minha vida. Morei sozinho pela primeira vez, aprendi a fazer coisas que nunca sonhei em fazer, conheci pessoas diferentes. E, finalmente, experimentei a real liberdade.
Mas, como nem tudo são flores, houve dificuldades, também. E eu, talvez pela pouca idade, tive uma experiência boa, mas eu não estava pronto para seguir a diante. Tive a certeza que, naquele momento, pelo menos pra mim, liberdade não era tudo na vida. Há várias coisas por trás da liberdade e que a gente só aprende mesmo com o passar do tempo. Uma pessoa só consegue usufruir de sua liberdade quando tem uma base. Uma base que é um misto de moral, desejo individual e conhecimento da vida. E eu definitivamente só tinha os dois primeiros vértices desse triângulo: sempre soube o que queria da vida e sabia que “minha liberdade terminava quando a do outro começava”. Mas de vida real, de responsabilidade, eu não sabia nada.
Com medo, recuei, precisava disso pra mim. E o piercing-liberdade continuava lá. Apesar de tudo, ainda tinha um carinho grande por ele, e ainda um pezinho na liberdade sem medidas. A lança, o “spike”, da ponta inferior representava bem esse lado da liberdade. Esse lado que machuca. Já havia me machucado diversas vezes com essa parte do acessório, inclusive. Com o tempo, fui vendo que a liberdade não era só sair fazendo o que bem quiser. E, percebi que aquele acessório que, um dia representou uma nova fase da minha vida, não fazia mais sentido. Que ele foi importante, que através dele, aprendi uma lição que levarei para o resto da vida. Mas que o significado dele no meu corpo já não era aquele de anos atrás, quando fui ao estúdio.
Como a liberdade irresponsável, foi difícil retirar o piercing da orelha. O alto custo na época e o amor que eu peguei por aquele pequeno objeto foram decisivos para continuar com ele por algum tempo. Ainda não estava pronto. Até que um dia tive a simples vontade de tirá-lo. Veio naturalmente, assim como a real liberdade, quando você aprende realmente lidar com as implicações dela. Hoje guardo aquele tempo, juntamente com o piercing, com nostalgia, mas que era preciso ser superado. Porém, continuo com o brinco na orelha direita, afinal, um pouco de liberdade não faz mal a ninguém. 

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